segunda-feira, 27 de julho de 2009













copiado do maravilhoso artigo de José Carlos Avellar "Toda a vida mais cem anos":

Fellini contou certa vez um sonho que julgava ter algo a ver com o sentimento impreciso de um filme que jamais chegou a se formar claramente em sua cabeça, mas que o perseguiu longo tempo como se fosse uma etapa necessária para a invenção de uma outra história, de um outro filme. Sonhou que era diretor do aeroporto. Sua mesa ficava num imenso salão vazio de onde se podia ver a pista iluminada através das paredes de vidro. Como chefe do aeroporto, ele se encarregava também da imigração: os vistos de entrada no país eram liberados por ele. Estava atendendo os passageiros quando notou no fundo do salão um chinês, sozinho, sem bagagem, com um quimono largo que lhe conferia um ar solene. Estava na fila e logo chegou à mesa, as mãos ocultas nas largas mangas do quimono, os olhos fechados. Sua figura pareceu a Fellini uma mistura de aristocrata e miserável. Os cabelos eram gordurosos e sujos, tinha um cheiro estranho, mas ao mesmo tempo um ar de nobreza. Poderia ser um rei, um santo, um cigano, um vagabundo. Parado, diante da mesa, não diz nada. Fellini se sente então pressionado por um sentimento de ânsia e inquietude. Sabe que o estrangeiro espera sua decisão, sabe que é ele que deve decidir se o chinês pode entrar ou não, que é ele que deve conceder ou negar o visto, mas não consegue decidir. Começa a balbuciar desculpas infantis e absurdas: diz que a decisão não depende dele, que está subordinado a gente mais importante, mais competente, e esta gente sim sabe o que fazer; diz que não é o verdadeiro diretor do aeroporto. E, como não sabe mais o que dizer para o chinês, que continua calado, um sentimento de vergonha o leva a baixar a cabeça. Percebe então que a placa sobre a mesa indica com clareza: Diretor. E a partir daí não ousa mais levantar a cabeça. Aflito, os olhos enterrados no chão, procura descobrir o que será pior: levantar a cabeça e descobrir que o chinês continua ali? Ou levantar a cabeça e não encontrar mais o misterioso estrangeiro vindo do oriente? Acorda em seguida com uma sensação desconfortável. O sonho, narrado num texto, foi anotado também num desenho: o salão amplo do aeroporto; o chão, a mesa do diretor e o banco onde alguns passageiros esperam sentados, são de cor alaranjada. Por trás dos vidros azulados vemos os aviões na pista. Os aviões e os passageiros são esboçados em traços ligeiros. O desenho, mesmo, é o chinês diante da mesa, figura dominante, no centro, grande, bem maior que o minúsculo diretor que vemos de costas numa cadeira pequenina engolida pela mesa grande. O chinês veste um quimono azul com enfeites cor de vinho. Sua cara amarela é marcada por poucos traços mas bem definida: rosto arredondado, olhos fechados, cavanhaque em torno da boca fina cabelos, cabelos caídos até os ombros. Num canto do desenho a assinatura de Fellini e uma anotação: Sonho de outubro 1961.

leia o texto na íntegra aqui!

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